Magali do Nascimento Cunha (foto), jornalista, doutor aem Ciências da Comunicação, professora da Universidade Metodista de São Paulo (Faculdade de Teologia e Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação) e autora do livro “A Explosão Gospel. Um Olhar das Ciências Humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo” (Ed. Mauad) faz uma oportuna reflexão sobre a disputa Rede Record x Apóstolo Valdemiro Santiago.
Em artigo, Magali, além de apontar que denúncias e ataques que envolvem lideranças religiosas que têm presença nas mídias não são novidades a autora faz uma importante reflexão sobre ética na imprensa e a ética religiosa.
Leio o texto na íntegra:
Estamos assistindo, nesta semana, a mais um capítulo não-inédito do espetáculo da religião nas mídias: a reportagem de Marcelo Rezende (e toda a repercussão dela), veiculada no programa Domingo Espetacular, da Rede Record, na noite do último 18 de março, que denunciou supostas práticas de uso ilícito das arrecadações financeiras da Igreja Mundial do Poder de Deus, especialmente da parte do líder maior, o apóstolo Valdemiro Santiago.
Explicar o porquê dos termos-chave da frase que abre este pequeno artigo – capítulo não-inédito, espetáculo, religião nas mídias – é, ao mesmo tempo, buscar compreender o significado deste componente do cenário evangélico no Brasil.
Capítulo não-inédito
Denúncias e ataques que envolvem lideranças religiosas que têm presença nas mídias não são novidade: no rádio são muitos os exemplos de pregadores referindo-se negativamente a outros, há várias décadas; na TV, exposição pública mais destacada por conta das imagens, o fato considerado mais marcante aconteceu em 1995: o desencadeamento de uma série de ataques, da Rede Globo contra o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). O bispo Macedo e a IURD já haviam sido alvo reportagens-denúncia em 1989, pouco tempo depois da aquisição da TV Record (1987), no programa Documento Especial, da Rede Manchete, e de uma série de matérias no mesmo teor em vários veículos, com acusações de desvio e lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito com arrecadações financeiras da igreja.
Quando, em 1992, o bispo Macedo foi preso com acusações de charlatanismo, curanderismo e envolvimento com o tráfico de drogas, as mídias deram farta cobertura. Em1995 aRede Globo dá início aos ataques à IURD e ao bispo com reportagem-denúncia no Jornal Nacional sobre a exploração dos fieis com os dízimos e ofertas da igreja, processo que culmina coma veiculação da minissérie de ficção “Decadência”, sobre a vida de um pastor evangélico corrupto e devasso, identificado explicitamente com Edir Macedo. Esse foi também o ano doepisódio do “chute na santa”, que rendeu novas matérias críticas à IURD e ao bispo: durante a edição do programa de TV O Despertar da Fé, pela Rede Record, no ar no feriado de 12 de outubro, um dos bispos, de nome Sergio von Helder falou contra a figura de Nossa Senhora e deu chutes numa imagem da santa colocada no estúdio. A Globo se torna a “inimiga número um” da IURD e do bispo Macedo, e a programação da Rede Record tornou-se espaço de contra-ataque. Em2009, aGlobo desfere novos ataques contra a IURD, com matéria no Jornal Nacional que classifica seus líderes como máfia. O duelo ganhou terreno com repercussão em outras mídias.
Em 2002, foi a Igreja Renascer em Cristo o alvo de críticas nas mídias, especialmente das mesmas Organizações Globo. A partir de matérias-denúncia, de capa, publicadas na Revista Época, da Editora Globo, em duas semanas consecutivas, com repercussão em jornais, no rádioe na TV, a Renascer e seus fundadores, o casal Estevam e Sônia Hernandes, passam a ser alvo de matérias-denúncia quanto a desvio dos fundos arrecadados pela igreja e pela fundação que leva o mesmo nome. Em 2006, aJustiça bloqueou os bens do casal com acusações de
estelionato, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Os episódios culminaram, no ano seguinte, com a prisão do casal Hernandes nos Estados Unidos, para onde viajaram com valores em espécie não declarados. Houve ampla cobertura das mídias ao fato. Eles foram julgados pela acusação de contrabando de divisas, conspiração e falso testemunho e ficaram presos por 140 dias, passaram cinco meses em prisão domiciliar e mais um períodoem liberdade condicional. Estevam e Sônia Hernandes foram liberados e voltaram ao Brasil em2009, mas continuam respondendo a processos no Brasil por ilegalidade na gestão financeirada igreja.
O capítulo desta semana, portanto, não é inédito, como também não é inédito que personagens religiosos midiáticos protagonizem combates entre si. Em 2010, entrando por 2011, os embates entre o bispo Macedo e o pastor da Assembleia de Deus Vitóriaem Cristo Silas Malafaiase intensificaram e tiveram espaço na TV, no rádio e na internet por meio dos sites e blogs dos religiosos, de vídeos no Youtube e das redes sociais com manifestações de partidários. Em2011, aRecord reforçou a disputa com matéria no programa Domingo Espetacular, de 13 de novembro, com crítica à prática de “cair no Espírito”, ou “Bênção de Toronto”, respeitada e adotada por vários grupos evangélicos. Nessa etapa de confrontos, outros religiosos midiáticos também foram envolvidos, como o pastor do Ministério Tempo de Avivamento e deputado federal Marcos Feliciano, até os cantores gospel, classificados por Edir Macedo como “endemoniados”. Não é surpresa que o pastor Silas Malafaia tenha se pronunciado, de imediato, pela Internet, sobre a matéria deste domingo, 18 de março, não isentando Valdemiro Santiago, mas acusando o bispo da IURD com a seguinte frase: “O resumo da historia é este: o sujo falando do mal lavado. Todos farinha do mesmo saco”.
A matéria do Domingo Espetacular contra a Igreja Mundial deixa claro que o apóstolo Valdemiro Santiago, pastor dissidente da IURD, tem por prática pregar contra a IURD e fazer acusações contra o bispo Edir Macedo em seus programas na TV. Durante os dias posteriores ao programa da Rede Record, Valdemiro Santiago tem apresentado sua defesa, garantido aos fieis da igreja que já entrou com processo contra a Rede Record para obter direito de resposta e desferido novos ataques à IURD e ao bispo Macedo, a quem trata como “eles”.
A lógica do espetáculo
Estas constatações nos levam a um outro termo usado na primeira frase deste texto:espetáculo. Não se pode assistir a estes acontecimentos sem ter a compreensão de que eles são um espetáculo, uma demonstração pública, o sentido mais lato do termo. O filósofo Guy Debord chama atenção para isto em sua análise da sociedade contemporânea: o espetáculo é a aparência que confere integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida. Dessa maneira, por meio da ação das mídias, as relações entre as pessoas transformam-se em imagens e espetáculos. O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.
Segundo Debord, tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. Por exemplo, a violência, uma das faces mais cruas do relacionamento humano, entra nas casas por meio de imagens-espetáculo, assim como a sexualidade ou o convite ao consumo de bens e serviços e as pessoas-espetáculo (as celebridades). Dar espetáculo é provocar, convidar ao consumo de conteúdos; por vezes, o escândalo é uma forma espetacular de atrair audiência e consumidores de conteúdos. Programas que expõem brigas de família ou fatos inusitados que envolvem a vida de celebridades atraem um público significativo.
Com a religião nas mídias não é diferente: esta presença se consolida na trilha culturadas mídias, que é a lógica do espetáculo: os milagres , os exorcismos, os cultos-imagem, a exposição dos religiosos espetaculares, e… as brigas e os fatos inusitados… Tudo isto em torno da lógica midiática que passa pela visibilidade dos emissores e a captação de receptores, e, consequentemente, de consumidores. Afinal, as mídias são veículos da “indústria cultural”, termo nascido em meados do século XX para denominar a lógica que rege o lugar social das mídias. Nos tempos de hoje, mais coerente é nomear o fenômeno como “mercado cultural”, já que ele não passa somente pela indústria e a venda de produtos mas também de serviços etodos os derivados.
A religião de mercado
Religião midiática é mercado cultural, é religião de mercado. A fé, nesse caso, é uma produção ao redor da qual circulam produtos, bens e serviços, oferecidos para financiar a presença dos grupos que têm poder financeiro nas mídias, e as consequentes ampliação de visibilidade e busca de hegemonia no cenário religioso. No sentido estabelecido pela sociedade do espetáculo em que para ser visto, conhecido e acreditado é preciso estar nas mídias, grupos religiosos já são formados com esta compreensão e com este projeto pastoral de visibilidade social e ocupação de espaços, tendo seus públicos-alvo previamente determinados. Não é difícil visualizar, no crescimento da presença midiática da Igreja Mundial, que Valdemiro Santiago é discípulo de Edir Macedo e dos outros líderes da IURD e, na prática, segue seus passos.
Na lógica do mercado cultural cabe a concorrência, o uso do espaço para minar concorrentes e ganhar a apoio do público (audiência). Não é preciso recordar as análises sobre os casos Globo-IURD e Globo-Renascer que classificaram os embates como de concorrentes. Não foi à toa que, no caso Renascer, em 2002, oSBTabriu imediato espaço no Programa de Gugu, no mesmo domingo 20 de maio, para Estevam Hernandes apresentar sua defesa. Concorrência é valor do mercado.
Discernindo…
O que assistimos nesta semana é nada menos do que mais um episódio da prática da concorrência de mercado tanto midiático quanto religioso. O que parece ser um duelo entre líderes e preceitos religiosos é, de fato, um duelo pela conquista de visibilidade, de espaço, em busca do público consumidor. E isto coloca a religião num patamar que, talvez, não estivesse na sua razão de ser (o re-ligar o ser humano ao divino), mas que é construído socialmente a partir dos sentidos estabelecidos pela sociedade do espetáculo: religião torna-se bem de mercado, elemento de barganha, estratégia de marketing. E assim, como se diz no popular, tudo isto “torna-se briga de cachorro grande” pois extrapola o espaço do estritamente religioso, uma disputa entre grupos religiosos, no caso, pentecostais, e ganha dimensões mais amplas.
Por exemplo, quando um personagem por vezes protagonista, por vezes coadjuvante, como o pastor Silas Malafaia, que assume o papel da pessoa controvertida em todo este contexto e constrói sua imagem midiática como “aquele que diz as verdades”, é convidado para uma conversa com o vice-diretor das Organizações Globo, João Roberto Marinho, temos um sinal do patamar em que se encontra a religião nas mídias. Segundo depoimento do pastor depois da conversa (Revista Piauí, 66, set 2011), Marinho teria alegado precisar conhecer mais o mundo dos evangélicos já que a emissora teria percebido que Edir Macedo não seria “a voz” dos protestantes no Brasil. O pastor Malafaia ganhou, então, trânsito e já teve cinco aparições no programa de maior audiência da Rede Globo, o Jornal Nacional. Além do contato com Malafaia, as Organizações Globo, por meio da gravadora Som Livre, já contrataram grandes nomes do mercado da música evangélica que têm, a partir daí, espaço garantido na programação da Rede Globo, e tiraram da Rede Recordo evento de premiação dos melhores da música evangélica, o Troféu Promessas (o que talvez explique a referida classificação de “endemoniados” aos cantores, incluída a popular Ana Paula Valadão). Vamos estar atentos agora aos próximos passos neste interessante embate pela hegemonia nas mídias, tendo como barganha a religião.
Criticar Edir Macedo e Valdemiro Santiago e classificar de “baixaria” ou de “falso testemunho”o que assistimos nesta semana, com prorrogação certa por outras tantas, e inserir novas denúncias a uma ou a outra parte do duelo, é muito pouco e é desviar do ponto que dá sentido a este capítulo não-inédito, que não é isolado, como vimos, dentro deste processo da relação entre religião e sociedade. Quem se interessa por este cenário social, por motivações religiosas ou acadêmicas, é desafiado a desenvolver uma visão macro e reivindicar atitudes dos produtores midiáticos, religiosos ou não, que passem pelo campo da ética – a ética nas mídias e a ética na religião – senão estaremos fadados a ver cumprida “a profecia” de Dostoievski, registrada no conto “O Grade Inquisidor” (no livro Os Irmãos Karamazov).
Na história, Cristo volta à terra e é interpelado por um líder cristão com críticas: Cristo não deveria ter voltado trazendo de novo aqueles valores de misericórdia e justiça e andando no meio do povo apregoando-lhe a liberdade. O líder pergunta a Cristo por que voltou para atrapalhar o que a igreja estava fazendo: “Fica sabendo que jamais os homens se acreditaram tão livres como agora, e, no entanto, eles depositaram a liberdade humildemente a nossos pés”. O líder religioso, então, acusa Cristo de haver fracassado na sua missão por ter recusado a tentação do deserto: não distribuiu pão (milagres) para atrair público, não realizou espetáculos (jogar-se do pináculo do templo para ser aparado por anjos) e não aceitou as riquezas do mundo que lhe dariam glória e poder facilmente. No conto, o líder religioso diz que agora a igreja estava consertando esse erro que Cristo cometeu porque era perda de tempo esperar discípulos por amor: as pessoas querem mesmo é encontrar Deus por meio do pão, dos milagres, das maravilhas e do poder econômico. Por isso, no conto, Cristo é preso novamente.
Ética nas mídias e ética na religião: quem se habilita?
Magali do Nascimento Cunha, jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora da Universidade Metodista de São Paulo (Faculdade de Teologia e Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação), autora do livro “A Explosão Gospel. Um Olhar das Ciências Humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo” (Ed. Mauad).
Fonte: Guia-me
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